O JULGAMENTO DE JESUS
(Parte I)
O Julgamento de Jesus
Hon. Harry Fogle
Editado por Frederick Graves, JD
© 2000 by Jurisdictionary Foundation, Inc.
Hon. Harry Fogle
Editado por Frederick Graves, JD
© 2000 by Jurisdictionary Foundation, Inc.
Nota: Texto foi editado e, queremos
salientar que, o autor aborda esse tema como advogado, não como teólogo e recomenda
a pesquisa dos aspectos teológicos dos eventos por conta de cada um. Acredita
ele ter o ponto de vista de um advogado sobre os processos da lei que
culminaram na morte de Jesus na cruz cruel do Calvário e que essa análise pode
levar a uma melhor compreensão espiritual. Vide notas adicionais no final da
página.
Há
tanto misticismo e confusão acerca da crucificação e ressurreição que acabamos
perdendo de vista o facto de que Jesus de Nazaré foi julgado como homem diante
de uma corte de homens sob as leis dos homens, condenado e executado como
homem, e que como drama, o julgamento de Jesus supera quaisquer dos grandes
julgamentos da história da justiça humana. O que o autor busca enfatizar é que
não considera que uma raça inteira (os judeus) tenha causado a morte de Jesus.
E também não acredita que nenhum Cristão inteligente pensaria isto.
Segundo
o autor, apenas uns poucos homens poderosos em Israel - principalmente os sacerdotes
superiores daquela nação - foram os responsáveis pela injustiça que ocorreu.
Para
entender quão grande foi essa injustiça, é preciso saber um pouco sobre a lei
Judaica e como ela existia na época... um
verdadeiro e magnífico sistema de justiça criminal.
Sob
as provisões da lei Judaica não poderia haver condenação por um crime capital
baseado no testemunho de menos que duas pessoas. Uma testemunha era considerada
o mesmo que nenhuma testemunha. Se houvessem apenas duas testemunhas, ambas
teriam que concordar em todos os particulares até os mínimos detalhes. Sob a
lei rabínica, o acusado tinha o direito de ter um defensor. A lei Mosaica
dispunha ainda que um acusado não poderia ser obrigado a testemunhar contra si
mesmo.
Uma
confissão voluntária não era suficiente para a condenação sob a lei Judaica. O
ônus da prova ainda era do Estado, que tinha de provar que a confissão, se
houvesse sido feita, teria sido feita livremente, de forma voluntária e de
plena consciência.
As
testemunhas não tinham que jurar. O mandamento "Não dirás falso testemunho
contra o teu próximo" era considerado suficiente para deter o perjúrio.
Mentir na corte era perjúrio - sob juramento formal ou não. E mais ainda, havia
duplo desestímulo adicional ao perjúrio. Qualquer testemunha em um caso de
crime capital que desse falso testemunho recebia a pena de morte.
Se
o acusado de um crime capital fosse condenado, as testemunhas eram obrigadas a
assistir à execução.
Sob
essa provisão da lei, as testemunhas geralmente escolhiam suas palavras
cuidadosamente e só davam testemunho com grande cuidado!
O
Grande Sinédrio, a Suprema Corte Judaica, era a única corte com jurisdição
sobre crimes puníveis com a morte. A criação do Sinédrio é atribuída a Moisés.
Foi uma corte de 70 membros composta de um Sumo Sacerdote como juiz principal,
uma Câmara Religiosa de 23 sacerdotes, uma Câmara Legal de 23 escribas, e uma
Câmara Popular de 23 anciãos.
Era
a essa corte que Jesus se referia quando ele disse que devia ir a Jerusalém e
sofrer nas mãos dos anciãos, sacerdotes e escribas. Ele sabia que pela decisão
deles ele seria morto.
Extremo
cuidado era usado para selecionar os juízes dessa grande corte. Cada um devia
ter pelo menos 40 anos de idade com experiência em pelo menos 3 cargos de
dignidade gradativamente maior. Cada um tinha que ser uma pessoa de integridade
incontestável e tido em alta estima por seus conterrâneos.
Membros
do Sinédrio atuavam como juízes e jurados. Eles não tinham um júri separado.
Qualquer membro com interesses ou conhecimento pessoal das partes era requerido
que se retirasse do julgamento. A Corte tinha que decidir a questão da culpa ou
inocência apenas com evidências apresentadas no tribunal.
O
Sinédrio era encarregado sob a lei rabínica de proteger e defender o acusado.
Nenhum membro da corte poderia atuar inteiramente como acusador ou promotor. A
lei requeria que a corte desse aos acusados o benefício da dúvida para ajudar o
acusado a estabelecer sua inocência.
Os
procedimentos de julgamento eram similares aos nossos. Seguindo-se à audiência
preliminar, um sumário das evidências era dado por um dos juízes. Os
espectadores eram então removidos do tribunal e os juízes votavam. Uma maioria
era suficiente para condenar ou absolver. Se uma maioria votasse pela
absolvição, o julgamento terminava e o condenado recebia a liberdade total. Se
uma maioria votasse pela condenação, então um procedimento diferente era
seguido.
Nenhum
anúncio de veredicto poderia ser feito nesse dia. A corte teria que adiar por
um dia inteiro. Os juízes recebiam permissão para voltarem a sua casa mas não
poderiam ocupar suas mentes em quaisquer atividades sociais ou de negócios.
Eles tinham que devotar seu tempo inteiro para a consideração e reconsideração
solene das evidências e retornar no dia seguinte para votar de novo.
(Continua na próxima postagem)
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O
Rio Jordão, o único e verdadeiro rio da Palestina, o rio bíblico por excelência
– o texto santo cita-o mais de duzentas vezes – cuja existência estava
associada a tantos acontecimentos da história de Israel e o seria ainda à de
Jesus.
Como
eram belas, na sua diversidade estas “margens do Jordão” que o salmista
cantava! No extremo norte, havia uma região, deliciosamente silvestre, plena de
água cantante entre os loureiros, o país da tribo de Dan, onde o Jor e o Dan se
uniam para formar o rio, pequena Suíça palestinense onde os romanos tinham
construído um templo ao deus Pan, mas onde Jesus, parando com os discípulos ao
pé de uma rocha monumental, dirá ao fiel Simão: “Tu és Pedro e sobre esta pedra
construirei minha Igreja”. Um patamar de meia dezena de quilômetros retinha
então a água do rio num grande charco pantanoso: era, segundo a bíblia, o lago
Houleh, também chamado de “águas de Merom”, célebre desde que, nas suas
margens, Josué derrotara a coligação dos Jebuseus, dos Amorreus e dos Hittitas:
no tempo evangélico, era, orlado de favais, um vasto pântano onde, de pé sobre
uma pata grácil, as cegonhas espreitavam as carpas entre os juncos; amanhã,
transformado em região fértil, será uma Holanda Judaica de duas mil quintas,
onde apenas, relembrando o logo bíblico, uma pequena reserva zoológica verá
divertirem-se algumas manadas de búfalos e voltearem alguns voos róseos e
gritantes de flamingos.
O
rio desce ainda dez quilômetros em torrente rápida. Está já a 208 metros abaixo
do nível do mar quando chega a um grande lago, donde sairá vinte quilômetros
mais longe. Este lago, no tempo da missão de Cristo, não se chamava ainda
“Tiberíades”, tendo justamente Herodes Antipas começado a construir ali a sua
ímpia cidade cujo nome lembrava o do seu protetor romano Tibério.
Chamava-se-lhe muitas vezes “mar da Galiléia”, com um pouco de ênfase, porque
basta uma meia hora de barco para atravessar este mar. Mais poeticamente,
designavam-no também com uma palavra que lembrava a sua forma de harpa, o
“Kennereth”, donde veio o nome de “lago de Genesaré".
É
ainda hoje um dos mais belos lugares da terra. Sua água límpida, marmoreada por
vezes com manchas enigmáticas, varia do azul-safira ao verde de jaspe, com
grandes reflexos de ocra e de ferrugem junto das falésias ocidentais. As
colinas contornantes ordenam-se com graça, cobertas de culturas repartidas
cuidadosamente. O “Kennereth” era já assim no momento em que Jesus recrutava os
primeiros discípulos e, de pé, numa das barcas, falava à multidão reunida nas suas
praias. Talvez até fosse mais belo do que agora, pois as árvores rareiam. Era,
em todo caso, mais animado; a pesca e o negócio levavam a viver aí um grande
número de aldeolas brancas cuja maioria hoje está em ruína. Viviam felizes no
seu trabalho, entre as mimosas, os jasmins e os loureiros.
Logo
a seguir a paisagem mudava. Para lá dos moldes de lava que retêm o lago, o vale
torna-se mais selvagem. Já não era o paraíso, mas o Kikkar, um estranho país
onde a charneca inútil e os bosques se justapõem, estepe quase vazia nos
extremos, floresta-galeria seguindo os meandros do rio. O aspecto, em nossos
dias mudou muito: trabalhos de irrigação permitiriam implantar “Kibboutzins” na
faixa seca e a selva jordana diminuiu. No tempo de Cristo, evitava-se esta região,
preferia-se seguir a rota das colinas que se intercalavam entre o sopé dos
montes judaicos e o vale, precisamente uma linha de fontes havia feito surgir
ai oásis plenos de palmeiras, florindo o bálsamo; e o mais célebre, era Jericó,
onde Herodes, o Grande, construíra um palácio. Mais abaixo ainda, entre juncos
e amieiros, o Jordão espalha-se e pouco a pouco desaparece.
A
vista segue um instante a sua água limosa que vai perder-se nas águas pesadas e
cinzentas do mar Morto. Estamos agora a mais de 370 metros abaixo do nível do
Mediterrâneo. O ar é extraordinariamente imóvel e pesado. Em 76 quilômetros, o
comprimento do Leman, e uma largura de 16, no máximo, o lençol estende-se, ora
placa de estanho, ora turquesa opaca, engastado pelas rochas nuas. É um líquido
estranho e oleoso, no qual o corpo humano flutua e cujos sais múltiplos expelem
um odor desagradável de mineral apodrecido. Toda a vida está ausente, ou quase,
das suas margens: nada de aves; mas vôos exasperantes de insetos; nas bordas
dos riachos intermitentes que ai desembocam vegetam alguns tufos de
tamargueiras.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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Jerusalém. A mais bela, a perfeita - parte 2
“Bela cidade”, segundo Jeremias, Jerusalém sê-lo-ia na verdade? “Não se pode imaginar uma construção luxuosa: o conjunto de conhecimentos desta época opor-se-ia”. Só as casas dos ricos eram cobertas de telhas, os pobres se contentavam com teto de vimes e de terra batida a que São Marcos alude. Havia grandes diferenças entre os bairros: o de Sião, o mais antigo, era uma cabasch de estilo indígena; na cidade alta estavam instalados os poderosos e os ricos; nos arrabaldes do Bezeta, os comerciantes. A pedra aparelhada era rara: o aparelho das grossas pedras unidas pela argamassa não era elegante: os Judeus não eram como os Romanos, pedreiros de gema.
Todavia, além do templo, cujos esplendores eram incomparáveis, Jerusalém tinha palácios, casas luxuosas, obras de arte. Entre estas, as mais apreciadas eram as que asseguravam à cidade esse dom precioso que era a água. Havia alguns poços, como o de Fulon, de que fala o livro dos Reis, mas sobretudo havia piscinas, onde, com grande dificuldade, se tinha levado a água. Na parte baixa da cidade, a que o famoso canal de Ezequias alimentava, tinha o nome de Siloé, isto é, “Enviado”, nome todo cheio de significação mística, na qual pensa evidentemente o evangelista João contando o episódio do cego que Jesus curou mandando-o aí lavar. Era então uma bacia rodeada por um pórtico herodiano, de nobre aspecto. “Na liturgia da Festa dos Tabernáculos ia-se aí em procissão buscar água que se levava ao templo”. A outra piscina era ainda, no tempo de Cristo, fora das muralhas, e foi talvez a sua presença uma das razões que decidiram Herodes Agripa I a construir a sua terceira cintura: é a célebre “Piscina das cinco galerias” onde vinha, diz São João, banhar-se uma multidão de cegos, de coxos, de paralíticos, porque se assegurava que um anjo do Senhor aí descia de tempos a tempos para agitar a sua água e que o primeiro enfermo que nela se banhasse então ficaria curado. Talvez a confundissem com a “piscina probática” que, em tempos antigos, servia para lavar os animais do sacrifício. Era em todo o caso um belo edifício – a arqueologia encontrou-o – de 120 metros por 60, rodeado por uma galeria de arcadas, e dividido no meio por uma barragem dominada por uma galeria de colonatas: servia de banho público.
Muitos palácios causavam o orgulho da cidade. O dos Asmoneus era o mais antigo: datava sem dúvida de João Hircão. É provável que Herodes Antipas aí se instalasse quando vinha a Jerusalém para as festas e sem dúvida foi lá que Jesus foi levado diante dele. O esplêndido palácio fortificado que Herodes mandara construir no ângulo da cidade alta servia, com efeito, de residência ao procurador romano quando vinha a Jerusalém. “Magnífico acima de toda a expressão” diz Flávio José que não detesta a ênfase. Construído, como asseguravam, no mesmo lugar onde o rei David havia cantado os seus Salmos, fazia então literalmente corpo com a muralha. Torres quadrangulares, maciças, o protegiam, às quais Herodes, o Grande, dera nomes de seres que amara, seu amigo Hípico, seu infeliz irmão Fasael, a vítima dos Partas, e a esposa muito cara que mandara matar, Miriam. A última era a mais alta: vinte e oito metros. De noite, um fogo de vigia dançava na torre de Fasael. Mas o interior do palácio nada tinha de comum com os seus aspectos guerreiros. De mármore, o chão lajeado com pedras raras ou coberto de mosaicos, contando uma centena de leitos para os convivas, surpreendia, mais ainda que pelo mobiliário, pela beleza dos seus jardins onde muitos aquedutos alimentavam maravilhosas piscinas.
O sumo sacerdote em exercício tinha um palácio mais modesto, mas ainda imponente, pois que na noite trágica do processo de Jesus, veem-se nele um grupo de servos a aquecer-se no meio do pátio, e parece certo que Anás, o sumo sacerdote deposto, ocupava um outro.
Antônia não era uma residência, mas uma caserna. Sobre o local de uma antiga fortaleza de Salomão, as gerações tinham, vez à vez, construído defesas, no ponto em que, efetivamente, o cume do Bezeta proporciona o ataque mais fácil. Após o Exílio, tinham aí erguido a torre Hananiel, denominada em grego Baris, a “cidade por excelência”. Os Asmoneus, tinham-na engrandecido em forma de castelo forte, ao qual Herodes tinha dado a forma definitiva. Longo quadrilátero de cem metros por cinquenta, flanqueado nos ângulos por enormes por enormes torres quadradas, duma trintena de metros de altura, era verdadeiramente a chave da cidade santa, o ferrolho do templo. A guarnição romana aí estava instalada e de noite, duma torre à outra, ouvia-se o grito de alerta das sentinelas. Escadas desciam para os átrios sagrados: em caso de necessidade, os soldados dominariam qualquer motim; passagens, sob a esplanada do templo, permitiam atingir o coração da cidade. O centro do quadrilátero era ocupado por um vasto pátio no qual os minuciosos trabalhos das Irmãs de Sião e dos dominicanos da Escola bíblica permitiriam identificar a “terraplanagem lajeada”, o famoso “lithostrotos” que São João conta ser o lugar onde Pilatos instalou o pretório para julgar Jesus, e é comovente ver, no subsolo do convento das Irmãs de Sião, essas lajes enormes, usadas pelos passos, cavadas por inscrições diversas, que certamente Cristo pisou.
Quanto ao templo, ofuscava todos os outros esplendores da cidade e que o Judeu piedoso que chegava a Jerusalém só tinha olhos para ele. Era o templo de Herodes, o Grande, o que o faustoso déspota tinha, em 20 anos antes de Cristo, começando a construir sobre o local exato do de Salomão, já destruído por Nabucodonosor e do, infinitamente mais modesto, que reedificará no tempo de Esdras e Neemias – onde hoje se ergue, sobre o Hassam Ech Cherif, a mesquita de Omar, de cúpula azul. Embora dez anos após o início dos trabalhos, no aniversário da subida ao trono, o Idumeu tenha celebrado a festa da dedicação, embora mil sacerdotes e mais de dez mil operários aí tivessem trabalhado durante quarenta e seis anos – São João precisa este templo no capítulo segundo do seu evangelho – mesmo senão em 62-64, bem pouco tempo antes da sua destruição por Tito. Era, pois, todo novo; os seus mármores eram brancos, o ouro da sua fachada cintilava. No mais alto desta cidade de pedra que era Jerusalém, onde o mineral era rei, como um remate, a sua massa enorme ordenava as suas muralhas, as suas calçadas, os seus santuários, numa superposição rica de símbolos. “Casa de Deus”, era digna de sê-lo, esta construção para a qual nada era mais belo, nada mais suntuoso esse “santuário” para o qual “em nobre cortejo, ao som de gritos de alegria e de ações de graça, entre a multidão em festa”, subiam os peregrinos fervorosos.
Fonte: A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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Jerusalém. A mais bela, a perfeita - parte 1
Os Judeus admiravam-na tal como era. “A mais bela, a perfeita, alegria de toda a terra!” exclama o profeta Jeremias, e um aforismo dos rabinos assegurava: “Quem não vir Jerusalém jamais viu uma bela cidade”.
Considerada em conjunto, a certa distância, Jerusalém tinha com certeza grande majestade. Os visitantes de hoje ainda o testemunham. Até aos últimos tempos em que as construções modernas a modificaram muito, tinha conservado no conjunto um aspecto próximo do que podia ter, há vinte séculos, com as muralhas dos Cruzados a lembrarem as de Herodes e tendo a mesquita de Omar, num plano mais modesto, o papel que o templo desempenhava, na composição da paisagem. Quando os peregrinos das regiões do Norte, chegados ao cume do monte Scope, paravam para contemplar a cidade, viam-na semelhante a um veado adormecido sobre as colinas, “ruiva e trigueira” – sendo essa a cor do calcário torrado pelo sol -, picotada de manchas brancas, que eram os mármores dos palácios. Seus bairros ondulavam docemente, da cidade alta para a depressão média, para subirem em seguida até às muralhas do santuário.
Mas vista mais prestigiosa, a perspectiva incomparável era a que se tinha, vindo de leste, por Betânea, que se parava no cimo do monte das Oliveiras, onde Jesus olhou Jerusalém e chorou sobre ela. A impressão era surpreendente: é-o ainda. Era ao mesmo tempo a de uma fortaleza, de uma praça inexpugnável e de uma enorme jóia colocada sobre uma colina de bronze. Para lá da ravina do Cedron erguia-se uma muralha, de oitenta metros de altura, acrescida das torres de que uma, a do ângulo sudeste – o famoso “pináculo” onde o demônio tentador levou Jesus – não tinha menos de sessenta e quatro metros. Colocado sobre um alicerce de blocos ciclopeanos, erguia-se o templo, brilhante, elevando para o céu azul as suas agulhas douradas e flanqueando, na parte norte, pelo cubo maciço de Antônia. Detrás, na cidade antiga, as casas aglutinavam-se num camafeu de ocre, dividido por traços de sombra. Para oeste, ao fundo, os palácios dos Asmoneus, de Herodes, dos sumos sacerdotes, mostravam terraços brancos, pórticos com colonatas, e via-se a linha das muralhas enegrecidas subir ao cimo do outeiro do Gareb, desenhando grandes redutos cobertos de torres.
Para atingir a cidade, salvo quando se vinha do norte, de Cesareia ou de Samaria, era preciso transpor uma outra das encostas que a delimitavam. Eram sítios sem graça, contrastando muito com os arredores com jardins que, sobretudo a leste, subiam ao correr das colinas, com mais oliveiras e figueiras. O vale de Cedron era, numa boa parte, um cemitério, o cemitério de Josafá onde um judeu piedoso sonhava em ser enterrado, porque o profeta Joel tinha dito que a grande reunião dos homens no dia do julgamento aí teria lugar. Já se viam os túmulos de alguns dos grandes personagens de Israel, como Absalão; a tradição apócrifa fará esconder alguns apóstolos, na tarde de sexta-feira santa, entre os sepulcros. Quanto ao outro, o vale do Hinnom, o Ge Hinnom, era a muito famosa geena, de nome sinistro. Desde que, indignado por ter visto realizar, neste lugar de infâmia, sacrifícios humanos a Moloque, o santo rei Josias ordenara que se fizesse nele o esgoto da cidade, deitavam aí os animais mortos e as imundícies, que um fogo permanente se encarregava de destruir. Este recanto horrível era a imagem do inferno, e o seu fogo, desde Isaías, o símbolo das chamas eternas. Ninguém por ali se aventurava, caída a noite.
Para entrar na cidade era preciso transpor as famosas muralhas. Cingiam-na sem interrupções, numa circunferência de quatro quilômetros e meio. Partindo do templo onde ela se confundia com os muros de suporte dos átrios, a cintura encerrava a colina de Sião, baixava acima da confluência do Hinnom e do Cedron, subia para os bairros altos até ao palácio-fortaleza de Herodes, fazia um ângulo direito cujo cimo era guardado pela torre de Hippicius, parecia entrar na cidade por dois redutos, enquadrando o segundo o “monte do Crânio”, o Gólgota, onde se realizavam as execuções capitais, depois em linha reta alcançava o templo ou, mais exatamente, os pesados apoios de Antônia. Esta muralha, construída por Herodes, parcialmente sobre as bases da de Ezequias, era à letra, formidável. Muito mais bem feita que a “terceira muralha” que Herodes Agripa I elevou apressadamente em 44, e a fortiori que essa “quarta muralha” descoberta, muito ao norte da cidade, em 1925, e da qual os legionários de Tito deviam rir-se. Construída com blocos enormes, pesando, os mais pequenos, uma tonelada, aparelhados irregularmente” cheios de saliências habilmente preparadas e de reentrâncias” diz Tácito, ameadas, reforçadas por torres distantes umas das outras duzentos côvados – ou seja noventa metros, ao alcance de um dardo – pensava estar à prova dos cercos e, de fato, foram precisos cem dias aos quinze mil assaltantes do exército romano para tomarem.
Cada uma das portas era fortificada. A muralha aí atingia o dobro ou o triplo da sua espessura normal; uma área abobadada fora construída, fechada nas duas extremidades por pesados batentes. Por cima da abóbada um corpo de guarda resguardava os defensores. Quantas dessas portas aí haveria, portas de cujas forças e glória tantas vezes fala o livro santo? Onde se encontravam exatamente? Sem dúvida eram sete ou oito principais, sem contar as poternas. A leste a porta dourada, hoje murada, levava diretamente ao templo. Mais ao sul, a porta da Fonte abria também sobre o Cedron; a porta Efraim e a dos Jardins ou do Ângulo ficavam a oeste; ao sul a porta da Olaria dava para o Geena; ao norte, a dos Peixes via dirigir do seu limiar às estradas de Samaria, da costa e de Jericó. Quanto à famosa “porta das ovelhas” à qual Jesus se compara, era sem dúvida a que hoje se chama santo Estevão; por lá passavam os rebanhos destinados aos sacrifícios; era ao norte da porta Dourada; Jesus deve ter, muitas vezes, entrado e saído da cidade, transpondo o seu limiar.
Passadas as portas, encontravam-se logo no dédalo das ruas estreitas, ziguezagueando entre os blocos de casas, sem plano aparente, como em Veneza ou como na Cabach de Argel. Muitas delas tinham degraus, que facilitavam a marcha dos homens e dos burros; encontraram-se algumas dessas vias de degraus nomeadamente a que descia para o bairro de Siloé e, nos terrenos dos Assuncionistas, a que Jesus, sem dúvida, tomou na tarde de quinta-feira santa para se dirigir ao jardim das oliveiras. As grandes avenidas, as bastas desembocaduras não existiam ainda. O valezinho central do Tiropião, entretanto, era alcançado por uma larga calçada e por uma ponte que punham o templo em comunicação com a cidade alta. Na parte baixa alongava-se uma grande praça pavimentada, rodeada de pórticos que, ao norte, o velho palácio dos Asmoneus cingia; fora Herodes que a mandara construir para servir de agora ou de fórum à moda greco-romana chamavam-no o Xisto, isto é, a terraplanagem. Outras praças, menores, a que os tratados do Talmude aludem, têm nomes de ofícios: dos Carniceiros, dos Tecelões de lã, dos Apiosoadores, do Peixe, ou simplesmente Mercado do Alto ou do Baixo. Também as ruas, pelo menos as que tinham nome, eram muitas vezes designadas pelo de um ofício, dado que os do mesmo ofício estavam agrupados no mesmo quarteirão, como no Ocidente durante a Idade Média. O que explica o número prodigioso de sinagogas em que se reuniam para rezar ou conversar, 480! Cada corporação, cada bloco de casas tinha a sua, e também cada grupo estrangeiro que, pelas festas, subia a Jerusalém.
Fonte: A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
(Continua na próxima postagem)
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Jerusalém – Sua situação
Instalada
no coração das terras altas da Judéia que são o bastião físico e moral da
Palestina, Jerusalém ocupa uma situação que a geografia explica e que, em larga
média, esteve na origem do seu grandioso destino. Se toda a região é uma zona
de contacto entre sedentários da planície e nômades da estepe, o pequeno cantão
onde se formou a cidade é particularmente designado como lugar de passagem. A
pista mais meridional que possa atravessar o Ghor, antes do mar Morto, o
interdito, conduz às suas portas. O mesmo sucede, segundo a espinha dorsal do
país, chegando da Galiléia ou da Samaria. Para Gaza, Jafa, como para Jericó ou
Siquém, as estradas formam uma estrela de que ela é o coração. Dez horas de
caminho bastam para chegar ao Mediterrâneo, seis para atingir o Jordão.
Compreende-se o seu papel de capital, de fortaleza e de mercado.
Neste
ponto, a espinha central dos montes palestinos resultou numa plataforma de
quase oitocentos metros de altitude, que a erosão furiosa das torrentes fendeu,
dividindo-se em dois promontórios dirigidos do norte a sul sudeste, que separa
a modesta depressão que chamavam “o Vale dos queijeiros” ou o Tiropeão. Foi
sobre a parte meridional destes dois promontórios que se elevou Jerusalém, como
uma cidade protegida pelas profundas ravinas do Hinnom a oeste, do Cedron a
leste, ribeiras de águas intermitentes, muitas vezes secas, mas cujas cheias
são violentas e merecem então, quando as grossas chuvas do Inverno as fazem
rolar em vagas furiosas, o nome de “torrente dupla” como um deles. O
promontório ocidental, o mais elevado, 787 metros, é formado pelo Gareb e pelo
que os cristãos chamaram o “bairro do Sião” que não é o Sião hebraico: é a
cidade alta, onde os ricos tinham seus palácios. O promontório de leste, mais
estreito, divide-se em três pequenos planaltos, sendo o mais alto o Mória, de
750 metros, sobre o qual se erguia, cobrindo-o totalmente, o Templo, ficando
outros dois em nível inferior: o Bezeta, ao norte, de 735 metros, e o Ofel ao
sul, de 650 metros. É sobre o Ofel que a exegese e a arqueologia colocam a
Jerusalém primitiva, a Sião de David, e precisamente ao lado dessa “Fonte da
Virgem”, “Ain sitty Maryam”, ou Gião, cujas águas, captadas pelo rei Ezequias
no século II antes de Cristo, tinham sido dirigidas através de um túnel de 600
metros para a piscina de Siloé, a fim de servirem de reserva em caso de sítio.
Para lá da ravina do Cedron ergue-se uma longa colina, cujo nome fala ao
coração de todos os cristãos, o monte das Oliveiras. O seu prolongamento, ao
sul, chama-se monte do Escândalo, porque foi lá que Salomão, o ungido do
Senhor, deixou construir um altar aos ídolos de suas esposas pagãs. Na sua
extremidade reúnem-se os três vales hiorosolimitanos, para fornecerem o ribeiro
Em-Nar cuja ravina desce para o mar Morto.
Tal
a situação de Jerusalém, tal era no tempo de Jesus, dando curiosamente ao mesmo
tempo, quando nos aproximamos dela pela estrada, uma impressão de fortaleza, de
“cidade da altura”, segundo a imagem retomada sem cessar pela Escritura, e,
quando se vê de longe, ou hoje, quando se sobrevoa, a de um centro de bacia, de
uma vila cinturada de colinas. Uma única brecha, a do Em-Nar, a leva a
comunicar com o deserto, com a Ásia, dando passagem ao terrível Khansin. Pelo
menos, a sua altitude proporciona-lhe, após dias de céu plúmbeo, crepúsculos
cor de pêssego e noites de uma frescura delicada; e também chuvas fortes de
oeste, tão desejadas, que chegam trazidas por montanhas de nuvens, e por vezes
mesmo neve, porque o inverno não é palavra vã em Jerusalém.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
(Continua na próxima postagem)*************************************************************
Herodes
"O grande" - parte II
As
precauções não impediram, contudo que se formassem conspirações e que surgissem
crises. Na própria família do tirano, os conjurados encontravam cumplicidades
ou pensavam encontrá-las, o que, aos olhos de Herodes, tinha exatamente a mesma
gravidade. Por isso ele os castigou redobradamente. Todos os últimos
descendentes dos Asmoneus foram liquidados; o pequeno Aristóbolo, encantador
rapaz de dezesseis anos, que, por uma falsa manobra, aceitará nomear sumo sacerdote,
foi muito habilmente afogado pelos guardas gálatas na piscina do palácio de
Jericó; a muito querida Mariam, a única das suas dez esposas sucessivas que
Herodes parece ter amado, foi levada ao suplício porque desconfiava que tivesse
conspirado contra a sua vida. Os filhos seguiram-na no túmulo, como, aliás,
cinco outros nascidos das diversas uniões do déspota. “Mais vale ser porco de
Herodes que seu filho!” dizia rindo Augusto, porque, fiel ao menos a este
preceito da Bíblia, o senhor dos Judeus não comia carne de porco.
É
pois num clima de suspeita policial, de revoluções de palácio, sempre
possíveis, de “depurações” espetaculares, que é preciso visionar a vida
política de Israel durante os trinta e três anos que durou o reino de Herodes.
Ora se sabia que certos Fariseus, por haverem criticado, um pouco, tão alto
senhor, tinham sido enforcados; ora que trezentos oficiais, suspeitos de
intrigas na Samaria, tinham sido linchados por uma populaça sublevada da
polícia; ora que jovens que haviam tentado arrancar da porta do templo a ímpia
águia de ouro que o tirano aí mandara colocar, tinham sido queimados vivos ou
lapidados. Num emaranhado de violências, o famoso episódio evangélico do
massacre dos inocentes tem muito naturalmente lugar; está bem dentro do estilo.
E, contudo sucede que em muitas ocasiões este tirano feroz se mostra humano,
por exemplo, quando em 25, para pôr termo a uma terrível fome compra trigo
egípcio vendendo a sua baixela de ouro.
E
o povo judeu suportou-o, em definitivo, perto de quarenta anos. É fora de
dúvida que foi em razão de paz que lhe deu e da prosperidade real que
assegurou. Paz e prosperidade, entretanto com encargos pesados, e Flávio José
censurará mesmo a Herodes ter levado o seu povo à miséria, o que parece muito
exagerado. O que é certo é que a Palestina, durante este reinado, se cobriu de
monumentos, que os trabalhos públicos foram imensos, que as festas foram
inúmeras e de um fausto inesquecível. É, como se sabe, o meio usual dos
ditadores para levarem o povo a esquecer a perda das suas liberdades.
Fortalezas, inteligentemente situadas, foram edificadas ou reconstruídas:
Maqueronte, por exemplo, sobre o mar Morto, ou o Herodium que devia ser o
túmulo do senhor. Cidades destruídas como Samaria foram reconstruídas; o porto de
Cesaréia torna-se o melhor do país, o rival do Pireu. Mesmo em Jerusalém, um
teatro, um anfiteatro, um hipódromo, a despeito da hostilidade dos Judeus
piedosos aos espetáculos pagãos, atraiam multidões. Ergueram-se palácios, como
nunca se viram. Antonia, a pesada fortaleza, foi toda construída frente ao
templo para o vigiar. E, sobretudo, sobre alicerces prodigiosos de blocos
enormes – alguns têm doze metros de comprimento sobre dez de altura – um templo
todo novo começou a erguer-se, tão vasto que será precioso um século para o
terminar, tão rico que eclipsará o de Salomão.
Tudo
isto explica que apesar de tanta oposição, Herodes tinha podido manter-se e, no
fim de contas, morrer de morte natural. Antes ainda dos quarenta anos, a sua
saúde começara a decair. Uma febre tifóide levara-o à beira do túmulo e consequências,
de ordem psíquica mais que fisiológica, ficaram no seu organismo. Fora então
que, maníaco da perseguição, tinha visto um assassino em cada um dos
familiares. Foi ainda nessa ocasião que, louco de dor com o pensamento que ele
mesmo matara Mariam, o tinham ouvido vociferar a morte em todos os ecos do
palácio, como se ela voltasse. Seus últimos anos foram terríveis. Sem cessar
inventava torturas inéditas para suas vítimas; um silêncio de cemitério o
rodeava, quebrado somente pela salmódia dos operários do templo e pelos gritos
dos condenados. Uma doença terrível lhe viera, sem dúvida um cancro intestinal.
O pus escapava-lhe do corpo com vermes. Mandou que o levassem às águas de
Calirroé, perto do mar Morto, na esperança de que os banhos quentes e
sulfurosos o aliviassem, mas desmaiou com o primeiro. Perdida a consciência,
perseguido pelos fantasmas de suas vítimas, agonizou, num frenesi atroz,
ordenando que após a sua morte todos os personagens mais consideráveis do reino
fossem executados, a fim de que ao menos tivesse prantos sobre o seu túmulo.
Enfim morreu, no ano 4 antes da nossa era: Jesus tinha então dois anos.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
( Mais coisas da Palestina na próxima
postagem)
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De
37 a 4 antes da era Cristã, o trono da Judeia foi ocupado por Herodes. Este
nome ressoa tragicamente na história; no Evangelho, acorda lembranças de
horror. Todavia seria injusto julgar o personagem unicamente pela reputação,
merecida, que deixou de implacável carrasco. Por numerosas atitudes, é digno de
admiração, esse homem que jamais deixou desencorajar quando a fortuna parecia
escapar-lhe, esse diplomata supremamente hábil em revirar uma situação, esse
administrador de planos vastos, de vistas largas, esse construtor infatigável,
tudo isto acima da medida comum. Os contemporâneos qualificaram-no de “Grande”;
é justo, com a condição de não olhar muito aos meios com que foi alcançada esta
grandeza. Em todo o caso, ele foi o último grande soberano de Israel.
A
máxima quase única da sua política foi de estar sempre de acordo com a Roma,
isto é, com o homem que, em Roma, mandava. Quem era, quem seria este homem? A
Herodes como ao pai, a questão vital pôs-se, quando em Accio, em 2 de setembro
de 31, os navios de Octávio meteram a pique a frota de Antonio. Amigo do
vencido, Herodes estava perdido? Sua habilidade salvou-o. Não sem nobreza,
declarou ao vencedor: “fui amigo fiel de Antonio. Tentei desviá-lo da rota de
perdição para a qual Cleópatra o impelia. Se confiares em mim, serei o mais
fiel dos teus amigos”. Soube ser assaz persuasivo para que o desconfiado
vencedor acreditasse. Desde então, até a morte, apesar de algumas breves
crises, reinou o entendimento entre o Imperador e o pequeno “rex socius”, seu
protegido.
Podemos,
pois, representar o senhor da Palestina na época em que Jesus veio ao mundo
como um desses príncipes vassalos que as grandes potências toleram ou utilizam,
um marajá da época vitoriana, ou um Aga Khan. Atento em servir os interesses do
vencedor, sempre preste a intervir militarmente para os defender, sofrivelmente
adulador, Herodes não era, em suma, senão o criado de Augusto como diziam os
seus adversários. A sua fortaleza chamava-se Antonia, do nome de Antonio, mas
via-se também no seu palácio uma sala “César” e uma “Agripa”. Em contrapartida,
tinha obtido, num território pouco inferior ao reino de Salomão, e que alargou
ainda para lá do Jordão, todas as aparências de soberania. Desde o dia seguinte
à tomada de Jerusalém, tinha negociado por dinheiro, a retirada das legiões,
estacionadas na Síria, prestes a intervir, mas discretas. Tinha o seu exército,
formado por mercenários germanos, gauleses e trácios; a sua guarda recrutada
entre a juventude gálata, era esplêndida. Se quebrava tributo para Roma, tinha
também o direito de recebê-lo para si, de que nunca se privava. Parecia, no fim
de contas, tão independente como o podia ser o sultão de Marrocos ou o rei de
Tunis sob o protetorado francês.
Contudo
não ousara tomar para si as funções de sumo sacerdote, sabendo bem que os seus
administrados judaicos teriam visto nisso uma intolerável usurpação. Limitou-se
a nomear os titulares, indo buscá-los às famílias sacerdotais de muito pouco
prestígio para que não tivesse que temer a sua influência: colocou sete ou oito
e nenhum deixou o nome na História. O único que poderia desempenhar um papel, o
seu pequeno cunhado, o Asmoneu Aristóbolo, morreu muito oportunamente após seis
meses de pontificado. Quanto a Hircão II, Herodes oferecera-lhe a reinstalação
em Jerusalém, com todas as marcas de um grande respeito, mas com as orelhas
cortadas, que podia fazer o pobre velho?
Entretanto,
é preciso não se deixar seduzir muito depressa pelas aparências sólidas e
faustosas de Herodes. De fato as bases sobre as quais assentava sua autoridade
estavam minadas e ele bem o sabia. Uma larga parte da opinião judaica era-lhe
hostil, porque ele era Idumeu, um mal circunciso, um filho de Esaú, porque fora
imposto pelo vencedor romano, porque sua conduta era muitas vezes contrária aos
preceitos da lei e da moral moisaica. Esta animosidade constante explica a
dureza do regime que Herodes impôs aos Judeus, e, em certa medida, os seus
crimes. A sua polícia estava em todo o lado, tudo controlava. Ele mesmo,
contam, não desdenhava agir em pessoa. Um dia em que, incógnito, passeava nas
ruas e perguntava a um transeunte o que pensavam, no seu bairro, do rei
Herodes, este, malicioso, respondeu-lhe com uma citação do Eclesiástico (X,
20): “As aves do céu transportam as palavras dos homens”.
(Continua na próxima postagem)
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
Nenhum
texto indica que os legisladores religiosos à época de Jesus, ao estabelecerem
as festas, tenham pensado no repouso dos homens, mas de fato, era na criação de
férias legais que resultava o calendário litúrgico, como sucedia na Idade
Média. Sucede, todavia, que a intenção religiosa estava no primeiro plano: na
Páscoa, ou nas Sementeiras, no Purim ou no Kippour, era sempre o Único, o
Eterno, o Santo dos Santos que se glorificava, se agradecia, se implorava.
Algumas
destas festas celebravam-se em casa, nessa célula de base religiosa que era a
família, ou entre amigos, no círculo de um mestre com os seus discípulos, como
se vê fazer a Jesus pelos doze apóstolos. Mas todas tinham um caráter
comunitário muito nítido, como tanto outros traços da vida judaica. Mais que o
indivíduo, era o povo inteiro que se voltava para Deus, para o Seu Deus.
Cerimônias públicas, com ritos minuciosamente regulamentados correspondiam
ocasiões de peregrinações, nas quais o Judeu fiel não deixava de participar
tantas vezes quantas podia.
Peregrinações
de Israel, Meca ou Benarés, Lourdes em pleno mês de agosto dão a ideia do que
podia ser Jerusalém nos dias das festas principais, quando um povo inumerável
convergia para as suas muralhas. De toda a parte chegavam peregrinos. De todos
os cantões da Palestina, mas também desses países longínquos onde a Diáspora
fixara comunidades que continuavam fiéis; dos portos de Cesaréia e sobre tudo
de Jope – sendo o primeiro muito pagão – onde empresas especializadas descarregavam
barcos cheios de peregrinos. Iam em peregrinação formando pequenos grupos de
parentes e amigos. Reinava a fraternidade entre os viajantes e se os peregrinos
ricos se preparavam para terem todo o conforto possível, ninguém ousaria dizer
ao maltrapilho acotovelando sobre a ponte do barco ou nas estradas: “Que fazes
tu? Como estás aqui?”. Sobre todos os caminhos que levavam às portas santas,
era antes um rosário quase ininterrupto de caravanas que se encontravam, se
saudavam alegremente, antes de continuarem a andar juntos.
Entoado
por centenas de peitos, elevava-se um cântico, recomeçando sem cessar: o tom
era o das canções populares, as letras, as dos famosos “Salmos de peregrinação”
ou “Cânticos das subidas”, cujos textos a bíblia conservou e especialmente os
Salmos LXXXIV e CXX a CXXXIV que todo o Israelita devia ter “gravados no
coração”. Um apontava o grande apelo à peregrinação: “Minha alma sofre,
desfalece, desejando os santos átrios. Minha carne e meu coração vibram quando
penso no Deus da vida”. Outros cantavam a alegre esperança, a felicidade do
caminho sagrado: “Oh! Imensa alegria a minha quando me disseram: vamos à casa
de Deus!”. Quando chegavam à vista da Cidade Santa – quando tinham atingido o
“Vale dos Iódãos”, - bem diziam Iavé, exaltando a Glória da Cidade, “a cidade
tão bem construída, onde tudo se agrupa em um conjunto perfeito”. E, no momento
em que “pisavam o limiar das portas”, muitos prostravam a face contra a terra,
para beijarem o solo sagrado.
Quantos
eram esses peregrinos das grandes festas? Flávio José contou que tendo o rei
Herodes Agripa ordenado, num ano, pela Páscoa, que tirassem pra seu uso um rim
por cada cordeiro imolado, recebera 600.000, o que, acrescenta, imperturbável,
o historiador, a dez peregrinos em média por cordeiro, permite calcular em seis
milhões o número de visitantes! Mais tarde, o Talmude elevará mesmo esse número
a doze milhões! Calculando o número de participantes que o Templo podia conter,
alguns quiseram reduzir esse número a 160.000, o que é notoriamente muito
fraco, dizendo o tratado Pesahim (Páscoa) que em razão da afluência, era
preciso repetir os ofícios três vezes. Seria, portanto, cerca de meio milhão de
peregrinos que Jerusalém veria afluir nas grandes festas, o quíntuplo da sua
população.
Está
nisso um aspecto da vida judaica cuja importância não será demais exagerar.
Esta prece comum de um povo inteiro assegurava a sua coesão, exaltava nele o
sentimento da sua unidade. Jornaleiros andrajosos, eremitas de tanga, ricos
traficantes de Alexandria e de babilônia, vestidos com linho fino, todos nos
átrios do Templo, se sentiam irmãos durante alguns dias. Nas cerimônias
litúrgicas comprimiam-se ombro a ombro. Depois, nas ruas transbordantes,
deambulavam, “davam a volta a Sião, ladeavam a sua cintura, contavam as suas
torres; iam até às muralhas exteriores para as examinar e paravam, cheios de
admiração, diante dos palácios”, a fim de contarem aos que ficavam em casa tudo
o que viram, e de louvarem com eles o Onipotente que tinha ordenado todas estas
coisas.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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A fauna na Palestina
As
diferenças entre o tempo de Jesus e o nosso são muito mais marcadas pela fauna
do que pela flora. Uma só é verdadeiramente visível: os animais selvagens eram
então muito mais numerosos. Encontram-se ainda na Palestina javalis, porcos-espinhos,
raposas, ou, perto do deserto, antílopes, gazelas, “o cabrito montês do Sinai”;
durante a noite, ouve-se o uivo do chacal e o rir enrouquecido da hiena. Um
curioso pequeno animal, de que fala a Bíblia, abundante ainda, do porte de um
coelho grande, um pouco semelhante à marmota, mas que os naturais aparentam ao
elefante ou ao rinoceronte; os Judeus chamavam-no o “daman”, isto é, “o que se
esconde”, porque vivendo em grupos, sabe proteger-se por meio de sentinelas e
desaparecer ao menor alarme; não o comiam – ao contrário do que faziam os
Árabes – porque a Lei proibia consumir carne dos mamíferos cujos pés não
tivessem os cascos fendidos.
As
aves são numerosas. É raro, na Terra santa, fazer um percurso no campo sem
ouvir o seu canto ou o branco sussurro de um voo de pombas. Pendida com um
lustre a um fio invisível vê-se por toda parte qualquer negra ave de rapina
flutuar, imóvel, no azul duro do céu. Por isso o Evangelho fala muitas vezes de
pássaros, de seus ninhos, dos seus costumes, Jesus cita-os muitas vezes nas
parábolas. “O santo Job já havia louvado a sabedoria do íbis e a inteligência
do galo”. Gostavam de domesticá-los, nomeadamente certos pombos que, segundo o
tratado do Sabbat, Herodes, o Grande, tinha introduzido, e também corvos, o que
era menos belo.
Os
peixes eram, e são ainda, muito diferentes dos que são familiares às nossas
águas: em quarenta e três espécies, só oito pertencem à fauna ordinária dos
rios mediterrâneos. Na bacia do Jordão existem numerosas variedades semelhantes
às da África Central. Cromídios e ciprinos são os mais espalhados, assim como
um silurno sem escamas. No lago Tiberíades, muito cheio de peixe – o evangelho
mostra-nos quanto a pesca ai florescia, - o mais curioso é o “peixe de São
Pedro”, hemicromis sacra ou ainda pater-famílias, análogo ao “tilápio” da
Tailândia, que aloja a sua progenitora na cavidade bucal: quando os peixes
pequenos se tornam muito embaraçantes expulsam-nos metendo na boca um calhau,
mesmo uma moeda, como se vê no Evangelho segundo São Mateus, onde São Pedro
apanhou um que tinha engolido um estáter.
Numerosas
variedades de répteis vivem na Palestina, mais abundantes há dois mil anos, mas
as variedades venenosas são relativamente raras. A bíblia, que atribui à
serpente o papel maléfico que sabemos, não distingue muito bem as que,
legitimamente, podiam passar por diabólicas e as que são úteis aliadas do
agricultor. O áspide, isto é, a serpente – a cerasta, a víbora são citadas e o
texto sagrado alude muitas vezes à sua mordedura, língua, veneno, manhas. De
fato, exceto as víboras, de que havia quatro variedades, sendo a cornuda a mais
perigosa, encontravam-se sobre tudo esses inimigos do homem na selva do Ghor.
Em compensação a cobra abundava: era protegida, quase domesticada.
O
burro era indispensável da vida palestinense. Via-se por toda a parte. Nenhuma
família, mesmo pobre que não possuísse um desses bons servos de orelhas
cumpridas. Se não se podia comprar um, alugava-se, por três dinheiros por mês,
cerca de 18 francos oiro. Não era o burro dos nossos arredores, muito menos o
burrico, miserável e pequeno do Magreb. Mas sim o burro mascote, grande, forte,
que percorre galhardamente os quarenta quilômetros por dia, e cujo pelo é por
vezes de um cinzento tão pálido que se diria branco, belo animal sobre o qual
Cristo poderá fazer nobremente a sua entrada em Jerusalém. Para o transporte,
para a trela, o burro não tinha rival, salvo no seu meio-filho o macho; nunca
era oferecido em sacrifício.
O
cavalo era muito menos útil. Na caravana que tinha reconduzindo do exílio o
povo santo, só se empregavam 736 cavalos contra 6.720 burros, o que devia ser a
proporção no tempo de Cristo. Os profetas, aliás, desprezavam este animal,
símbolo de luxo, de força, de violência; o novo testamento quase o ignora.
Atrelavam-no, mas não o montavam. Os únicos encontrados por Jesus deviam ser
soldados romanos. O camelo, tão frequente hoje, era-o pouco; na volta do
Exílio, contavam-se apenas 435 na caravana. Era o camelo de duas bossas que se
vê nos baixos relevos persas. Caro, mas sóbrio e capaz de transportar 500
quilos durante 50 quilômetros, viam-se chegar do deserto, com mercadorias da
longínqua Ásia. Jesus cita-o em duas fórmulas célebres, aquelas em que nos fala
do “fundo da agulha” onde um camelo não poderia passar e a outra onde censura
os “condutores cegos” que filtram um mosquito e engolem um camelo.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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Será
possível atribuir a este acontecimento um lugar preciso no tempo, uma data, no
sentido em que a História considera esta palavra? Temos aqui de reconhecer a
nossa ignorância e que tal data, tão importante, - pois, nos usos do Ocidente,
dela dependem todas as outras, - é das que mais sujeitas estão a conjecturas.
Se
o nascimento do Cristo serve hoje de ponto de partida para a nossa era,
devemo-lo a um monge, cita, Dinis, o Pequeno, Dyonisius Exigiuus, que vivia em
Roma no VI século. Apoiando-se no célebre texto em que São Lucas (III, 1,2)
estabelece o momento da prédica do Batista – pois fornece para esse fato seis
coincidências, - Dinis raciocinou do seguinte modo: João começou a pregar no
ano 15 do reinado de Tibério; o ministério de Jesus iniciou-se no ano imediato.
Ora São Lucas (III, 23) ensina-nos que Jesus “por ocasião do seu batismo, tinha
aproximadamente 30 anos”. Um simples cálculo, recuando 30 anos em relação ao
ano 15 de Tibério, deu-lhe o ano de 754 da era romana (754º ano da fundação
lendária da cidade): e foi esse número o adotado. O excelente monge, não tendo
nenhum meio de determinar a data em que morreu Herodes, nem a do censo, admitiu
que estes dois acontecimentos foram anteriores a 754, e parou ai.
As
coisas não são tão simples. Primeiro, como vimos, temos plausivelmente de
aceitar que o “décimo quinto ano” de Tibério se situa, não em relação à morte
de Augusto, mas em relação à data em que o seu herdeiro foi associado ao trono.
Além disso, a fórmula “cerca de trinta anos” não dá uma indicação muito precisa
a respeito da idade de Cristo, sobretudo se pensarmos que sendo os trinta anos
exigidos pelo costume judaico para entrar na vida pública, o evangelista
poderia muito bem querer tão somente assinalar que ele tinha a idade legal, que
já não era adolescente. Se admitirmos que o batismo se realizou em janeiro do
ano 28, Jesus, “com a idade aproximada de trinta anos”, terá nascido, pelo
menos, dois ou três anos antes do ano I da nossa era.
Mas
sem dúvida, nasceu muito antes. Encontram-se de fato, no Evangelho, outros
esclarecimentos cronológicos. Jesus, segundo São Mateus (II, 1), nasceu “nos
dias do rei Herodes”, o que São Lucas confirma a propósito do Batista (I, 5) e
do anúncio feito a Maria (I, 26), e que, de outro modo, volta a dizer o próprio
São Mateus, a propósito da visita dos Magos (II, 3) e da fuga para o Egito (II,
19, 22). Ora, nós sabemos por Josefo que Herodes morreu no ano IV antes da
nossa era; esta data é até verificada por um eclipse da lua, que o historiador
judaico afirma ter precedido de perto a morte do potentado, e que a astronomia
coloca em 12 de março do ano IV antes de Cristo. Sabendo-se também que Herodes
passou os últimos meses da sua vida nos banhos de Callirhoé, e depois em
Jericó, e que vemos que os magos o encontraram em Jerusalém, - temos de referir
a V antes de Cristo, pelo menos, a vista deles, e, plausivelmente a VI, o
nascimento de Jesus.
Um
outro dado cronológico figura em São Lucas (II, 1, 2): diz respeito ao
recenseamento que obrigou José e Maria a deslocarem-se para Belém. Esse
recenseamento, que o Evangelho situa “no tempo do governo de Quirino, na
Síria”, provocou numerosas discussões. A história conhece perfeitamente esse
Públio Suplício Quirino, senador, antigo cônsul, antigo combatente de África,
que foi realmente legado imperial na Síria; trata-se do mesmo que, encarregado
de vigiar Tibério, então em Rodes em exílio mais ou menos voluntário, se
entendeu com ele de tal modo que o futuro imperador ficou sendo seu amigo, e que
é também o mesmo de quem Tácito conta o processo escandaloso que moveu a sua
mulher, Emília Lépida, a quem havia repudiado. Infelizmente, nenhum autor
profano se refere a esse recenseamento geral “da Terra inteira”. Talvez que tal
fato nada tenha de surpreendente, dado que Dion Cássio, o único biógrafo que,
de Augusto, escreveu uma vida pormenorizada, só chegou até nós, na parte
relativa a essa época, sob a forma de fragmentos; que Tácito começa os seus
Anais no reinado de Tibério; e que Suetónio e Josefo não estão completos. A
célebre inscrição de Augusto em Ancira (Ancara) menciona três recenseamentos
ordenados por esse imperador: um em 726 (28 a.C.), outro em 746 (8 a.C.) e o
terceiro em 767 (14 anos depois de Cristo). Diriam respeito tais recenseamentos
a todos os habitantes do Império, ou somente aos cidadãos romanos? É ponto
discutível. E, tratando-se o segundo recenseamento, é preciso pôr a questão de
Quirino: teria ele podido proceder ao recenseamento de – 8? Supôs-se que ele
exerceu, por duas vezes, as funções de legado e que uma das suas legações foi
na Síria a partir do ano 6 depois de Cristo. Resta saber se a outra teria sido
anterior, e se, por exemplo, pode ser situada no período que vai de 4 a.C. a 1
depois de Cristo, época durante a qual há uma interrupção na lista, que
possuímos, dos legados na Síria. Mas 4 a.C., não é 8; é preciso, portanto,
admitir um outro recenseamento além daquele que figura no mármore de Ancira –
um recenseamento que Quirino teria ordenado especialmente para os seus administrados:
isto nada tem de inverossímil, pois que a administração romana gostava das
coisas feitas com rigor e de bom grado se envolvia em papelada. Este
recenseamento seria chamado “o primeiro” pelo evangelista, a fim de o
distinguir de um e o qual nos falam os Atos dos Apóstolos e Josefo. Mas isso
não dá uma coincidência absoluta com a data que pode estabelecer-se em relação
à morte de Herodes.
Pode-se,
pois, dizer que Jesus nasceu entre o ano 8 e 4, muito provavelmente no ano 6.
Esta incerteza, de resto, pela parte que diz respeito à sua vida, não tem senão
importância diminuta, uma vez assente que o texto de São Lucas –
“aproximadamente trinta anos” (III, 23) – deve ser tomado em sentido lato.
Quanto
ao dia exato do nascimento, que todo o mundo, hoje, fixa em 25 de dezembro,
esta data resulta de uma simples tradição. No século III, Clemente de
Alexandria optava por 19 de abril; propunha-se também os dias 29 de maio e 28
de março; no oriente, durante muito tempo, admitiu-se 6 de Janeiro; e foi somente
pelo ano 350 que a nossa data tradicional se afigurou estabelecida com maior
exatidão. Pensaram certas pessoas que ela podia ter alguma relação com a festa
do deus Mitra, ou do “Sol invencível”, posta em concordância com o solstício de
inverno, segundo o calendário romano. Conhecem-se muitos casos em que a
liturgia cristã utilizou, nas suas perspectivas, antigas festas pagãs. Não
aconselhava o papa Gregório o Grande, aos missionários que enviava à terra dos
Bretões, que “batizasses os usos e os lugares venerados pelos idólatras?”. As
nossas fogueiras do São João e a nossa Festa de Todos os Santos têm análogas
origens. Consagrada pela comemoração do divino nascimento, a data de 25 de
dezembro já não invocará o deus iraniano, o touro imolado, ou mesmo o Sol recobrando
a sua força sobre os pobres da noite, mas sim aquele outro astro do qual
Malaquias dissera: “Sobre vós, que temeis o meu nome, erguer-se-á o Sol da
justiça” (IV, 2).
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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Seria
de fato uma grande cidade Jerusalém? É extremamente difícil fazer uma ideia
exata do número da sua população. Os Romanos não nos legaram o resultado dos
seus recenseamentos na Palestina, e, mesmo se os possuíssemos seriam sujeitos a
caução. Os Judeus, como todos os Orientais, desconfiando de seus
recenseamentos, deviam subtrair-se a eles. Até a uma época muito recente os
números da população das cidades orientais são vagos: no começo do século XX,
um guia atribui ainda, ao Cairo, 200.000 e um outro 400.000.
Cícero
diz com desdém de Jerusalém: “uma cidadezinha”, mas o livro de Buarque
qualifica-a de “cidade muito populosa” e Flávio José, no seu “Contra Ápio”,
cita um frase de Hecateu de Abder em que o geógrafo grego assegura que, na
época de Alexandre, contava 120.000 almas. Como não cessou de aumentar na época
helenística e depois na romana, poder-se-ia, portanto, pensar que no tempo de
Cristo tinha 150.000. Isto parece um máximo. No interior da cintura da “Segunda
muralha”, em 1875, contavam-se 15.000 habitantes, com certeza; tendo em conta a
extensão da Cidade no tempo de Herodes e dos procuradores, deveria
multiplicar-se este número por quatro e chegar por isso a 60.000. É pouco mais
ou menos o que Renan admite: 50.000 e 150.000, isto é, à volta de centena de
milhar. Mas todo este cálculo é conjetural: é preciso ter em conta,
nomeadamente, a espantosa facilidade que os Orientais têm de se amontoar.
Um
tal número, em tal caso, assegurava a Jerusalém, na lista das cidades do
Império, um lugar honroso, mas não de primeiro plano. Nada comparável com as
grandes metrópoles do tempo, Roma e Alexandria. Augusto declara nas grandes
“Res Gestae” que, no seu duodécimo consulado, em 5 antes de Jesus Cristo, deu
60 denários a cada um dos 320.000 cidadãos da sua capital; pode-se concluir,
contando mulheres, crianças e numerosos escravos, que Roma ultrapassava o
milhão de habitantes; e é exatamente o mesmo número que se deve admitir para
Alexandria, por segundo a indicação de Diodoro da Sicília, meio século antes de
Jesus Cristo, a grande cidade egípcia contava 500.000 homens livres. Jerusalém
não era mesmo a aglomeração israelita mais forte do mundo, pois que, como já se
viu, as colônias judaicas de Alexandria e de Roma ultrapassavam-na muito, sendo
a primeira talvez o dobro ou o triplo da sua população.
A
situação paradoxal da terra santa e do seu povo, tão pequenos segundo os
Cômputos habituais, tão grandes no papel histórico, no prestígio, na
influência, era imitada pela capital deste país, desta nação. Não cidadezinha,
mas cidade modesta, como havia muitas na Europa, e ao mesmo tempo metrópole do
espírito.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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Árvores e frutos na Palestina
Será
que a vegetação que hoje vemos na Terra Santa é que Jesus conheceu? Não,
certamente. Se pelo solo, relevo, clima, o presente nos dá os aspectos
fundamentais de há dois mil anos, pelas árvores e pelas culturas já se não
passa o mesmo.
A
diferença principal assenta na desarborização trágica que afetou toda a região.
É certíssimo que a Palestina de há vinte séculos tinha florestas, onde agora só
se vê a estepe, o solo devastado, a rocha nua. Os Árabes, depois os Turcos, são
os principais responsáveis desta devastação.
A
existência de resíduos de pequenos bosques demonstra a presença antiga das
árvores, e também muitos nomes de lugares, muitas alusões da bíblia, que
utiliza algumas cinquenta vezes a palavra sylva.
A
mostarda negra, cujo grão, minúsculo, moído, constituía a mostarda, era
extremamente abundante; nas margens do lago Tiberíades, este arbusto torna-se
árvore, “na qual as aves do céu, segundo a parábola, vem fazer seus ninhos”, e
o seu desenvolvimento é tão impressionante que Jesus fará dele o símbolo da fé.
Um subarbusto, muito raro, o hissopo, servia, ligado em feixe, para as
aspersões rituais. Onde o homem vivera, como por toda a parte, encontra-se a
urtiga e eram também muito numerosos os cardos. Uma grande quantidade destas
plantas de silvado serviam para a alimentação ou para o condimento: o endro que
é um funcho de grãos perfumados; a hortelã-pimenta; a macela; o caminho de que
se tirava o grão batendo-o com uma vara; o anis que se infundia; a arruda
amarga – a ruta dos Italianos, que , macerada, era digestiva. Quanto às ervas,
havia a mistura de pequenas gramíneas, grama, dentes-de-leão que ainda hoje se
encontram. Nas partes mais secas cresciam doces forragens, muito semelhantes a
manjeronas que, diluídas, davam perfumes, tais como o orégão e uma outra que
imitava o nardo, muito caro, vindo da Índia.
As
plantas cultivadas eram numerosas, menos que hoje, certamente, mas ainda e
melhor cuidadas que há cem ou duzentos anos. De todas as árvores que a mão do
homem tratava, a oliveira era a mais preciosa. Características da paisagem
palestinense, sua folhagem cinzento-cinza dava-lhe um encanto de mistério.
Existia desde sempre; os Hebreus tinham-na certamente encontrado quando
chegaram a Canaã. Seus frutos consumiam-se cozidos ou crus; o azeite servia na
cozinha, para alumiar, nos cuidados da toilette, na farmacopeia, e, uso
sagrado, nas funções litúrgicas. Sua madeira era tão procurada que Salomão
fizera com ela os Querubins do Templo. Crescia em toda a parte, mesmo nos terrenos
pedregosos, em pleno sol, pelo que a Judéia lhe era especialmente propícia;
desenvolvia-se lenta, pacientemente, mas atingia doze metros de altura e
quinhentos anos de idade. Compreende-se que a bíblia tenha visto nela a árvore
da saúde, nacional ou individualmente, da alegria e da paz. A figueira distava
dela em importância. Na Fábula de Jotão que se lê no livro dos Juízes, não
disputava ela à oliveira e à videira o primado do reino Vegetal? Mencionada
mais de cinquenta vezes na bíblia, era também imemorável na Palestina.
Trabalhavam-na com todo o gosto, em girassol, para com ela fazerem pérgulas à
volta das casas ou nos campos. Sua fronde espessa prestava-se à meditação: esta
meditação donde a voz do Senhor arrancou Natanael.
Estar
à sombra de uma figueira era segundo o profeta Miquéias, era sinônimo de
felicidade e de desafogo. Esta bela árvore dava duas colheitas, o figo de
outono, mais abundante, que cresce durante o ano e o figo precoce, enorme, de
sabor delicioso, que o Talmude assegurava comer-se desde o dia seguinte à
Páscoa, e que levava a compreender melhor o episódio evangélico da figueira
maldita. Em locuções correntes, mostravam bem quanto a figueira era popular.
Quanto
à videira, terceira concorrente na competição entre as plantas úteis,
identificava-se quase, pode dizer-se, ao esplendor da Palestina, à sua
fecundidade; os exploradores de Moisés haviam trazido cachos tão grandes que o
povo errante ficara encorajado a lançar-se sobre Canaã. Ela crescia livremente,
por vezes disposta em berço, duma árvore à outra. Quais eram os gêneros das
plantas cultivadas? Semelhantes sem dúvida a esses enormes moscatéis – chamadas
“tâmaras de Beirute” -, de compridos bagos, de pele espessa ou dessas uvas pele
malva, de bagos redondos, que se encontram em Creta e na Ásia Menor.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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Anos Sabáticos
Um dos descansos santos marcava-se todos os sete anos, no
fim de uma “semana de anos” e outro todas as sete semanas de anos: sete vezes
sete, ou setenta vezes sete sugeriam a idéia de infinito. Fato muito importante
e que sublinha com um traço simpático os preceitos da lei judaica: esses dois
sistemas de festas eram, um e outro, marcados por intenções profundamente
generosas e caritativas.
Todos os sete anos, portanto, se celebrava o Ano Sabático,
um ano diferente dos outros. Não tanto pelas cerimônias religiosas que se
realizavam, mas pelas medidas sociais, humanitárias, e mesmo econômicas que
eram aplicadas. Nesse ano, a Lei ordenava que se desse a liberdade aos escravos
da raça israelita, sobretudo aos que tiveram de ser vendidos para pagarem as
dívidas. Ordenava também, nesse ano de remissão: “Abrirás a tua mão ao teu
irmão”, o que certos rabinos interpretavam como criando a obrigação de perdoar
todas as dívidas, opinando outros somente o perdão dos juros.
Enfim, mais espantoso ainda, a própria terra devia
beneficiar de um repouso total nesses doze meses: não lavravam, nem semeavam,
nem colhiam; deveriam somente tomar o indispensável para viverem. Mesmo os
frutos da videira e da oliveira eram deixados sobre as árvores pelos
proprietários, mas os pobres tinham o direito de se alimentar com eles, e os
animais dos campos, o que correspondia a uma dupla intenção de caridade e de
previdência agrícola. Aliás, o Livro santo prometia que o sexto ano, o que
precedia o sabático, seria fecundo e não seria falho em nada.
Esta obrigação, que parecia tão estranha ao homem moderno,
era respeitada: desde Neemias, o Povo eleito prometera formalmente
submeter-se-lhe; mesmo nas circunstâncias difíceis, pois que, durante o cerco
de Jerusalém pelos Sírios, a guarnição de Bethsur teve solicitar do inimigo uma
trégua “porque era o ano sabático”. Os Judeus orgulhavam-se com este uso tão
excepcional, a bem dizer, único na história: Flávio José di-lo, assegurando
mesmo que o imperador tinha renunciado a quebrar impostos nesse ano, o que
aliás, é muito duvidoso.
Os Romanos, esses, mofavam de tudo isso: prova, segundo
Tácito, da preguiça inveterada dessa raça! Que a aplicação não provocasse
conflitos, é outro negócio; e a jurisprudência abundante do Talmude sobre a
matéria prova abundantemente que isso não era simples. Mas era já bom que o
princípio da remissão dos homens e da terra fosse afirmado.
O ano do Jubileu, isto é, o que se seguia às sete semanas de
anos, era mais radical nas suas disposições. Todos os cinqüenta anos, todos os
escravos sem exceção deviam ser libertados: todas as propriedades que os pobres
tinham sido obrigados a vender aos ricos para pagarem as dívidas deviam voltar
às suas mãos, por um preço que a Lei fixasse muito estritamente. A intenção era
bela: aplicado este regulamento, colocava Israel na vanguarda de todos os povos
do seu tempo quanto aos problemas da escravatura e também quanto ao monopólio
das terras que, em Roma, era posto tão cruamente pelos latinfundiários.
Mas as dificuldades econômicas e sociais que a sua aplicação
teria provocado devem ter sido consideráveis; mesmo tão consideráveis que,
segundo o que o Talmude deixa perceber, o preceito do Levítico era pouco
obedecido. Limitavam-se, quando chegava o quadragésimo nono ano, “no décimo dia
do sétimo mês” a mandarem tocar por todo o país as estridentes trombetas. A
exortação de Iavé, pelos menos, não era esquecida: “Não vos leseis uns anos
outros, entre irmãos, mas temei o vosso Deus!”.
Fonte: A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus -
Daniel Rops
A Prisão de João
Herodes,
pois, prendera João, o algemara e pusera no cárcere, por causa de Herodíades,
mulher de seu irmão Filipe. Porque João lhe havia dito: “Não te é lícito tê-la”.
Embora Herodes quisesse mata-lo, temia o povo, porque este o tinha como
profeta. (Mateus, 14: 3-5)
Porque
o próprio Herodes mandara prender João e acorrenta-lo no cárcere, por causa de
Herodíades, mulher de seu irmão Filipe (pois Herodes se casara com ela), porque
João lhe dizia: “Não te é lícito ter a mulher de teu irmão”. E Herodíades o
odiava e queria mata-lo, mas não podia. Porque Herodes temia João, sabendo que
era homem justo e santo, e o protegia; e, ao ouvi-lo, ficava muito admirado e o
escuta com satisfação. (Marcos, 6: 17-20).
Mas
Herodes, o tetrarca, sendo repreendido por ele por causa de Herodíades, a
mulher de seu irmão, e por todas as maldades que Herodes fazia, acrescentou
ainda sobre todas, a de fazer encerrar João no cárcere. (Lucas, 3: 19-20).
Os
três evangelistas relatam-nos a causa principal da prisão de João Batista.
Revivamos abreviadamente a história, para melhor compreensão.
Herodes,
o grande, por sua morte, dera a Judeia a Arquelau, com o título de etnarca; e
legara com o título de tetrarca a Galileia a Herodes Antipas e Traconitide a
Filipe. Mas o velho Herodes tivera, da segunda esposa de nome Mariana, um
filho, Herodes Filipe, a quem nada coubera. No entanto, a este é que
inicialmente Herodes destinara sua sucessão no trono; e para que o governo
ficasse em família, o velho Herodes dera sua própria sobrinha Herodíades, então
com três ou quatro anos de idade, como esposa a Herodes Filipe, tio dela, pois
Herodíades era filha do irmão dele, Aristóbulo, que Herodes o grande tivera com
a primeira esposa. Mais tarde, porém, mandou matar esta primeira esposa e seu
filho Aristóbulo.
Bem
mais tarde, Herodes Antipas fez uma viagem a Roma, durante a qual visitou seu
irmão Herodes Filipe, o deserdado, que vivia como simples cidadão fora da
Palestina. Aí conheceu sua cunhada, já então com cerca de trinta e cinco anos,
e surgiu violenta paixão entre ambos. Ficou estabelecido que, ao regressar de
Roma, após reassumir o governo da Galileia, Herodíades iria a seu encontro,
para viverem juntos, ocasião em Antipas repudiaria sua mulher, a filha de
Aretas. Esta, porém, veio a saber do que se tramava e, para evitar a humilhação
do repúdio, escapou para Maquérus e daí para casa do pai. Aretas jurou vingar a
honra da filha e, após algumas escaramuças, fez guerra aberta contra Antipas.
Ao
chegar, Herodíades levava consigo sua filha que se chamava Salomé. Tudo acabou
com a fragorosa derrota de Antipas diante do exército de Aretas. Herodes
Antipas aborrecido com a advertência de João Batista a respeito do escândalo
que vinha de cima, prendeu-o e encarcerou-o acorrentado.
Para
livrar-se de quem o preocupava, o mais fácil seria fazê-lo morrer. Entretanto,
essa violência poderia piorar a situação, pois o povo admirava João Batista
como profeta, no melhor sentido da palavra, porque este nada temia e
confrontara o soberano, pelo que refere Marcos, pessoalmente. Marcos acrescenta
ainda que Herodíades o odiava; não ficara, pois, satisfeita com a simples
prisão de João Batista; queria sua morte. Todavia, Herodes queria evitar a
morte de João e procurava protege-lo, levando-o prisioneiro para onde quer que
fosse, como preciosa carga sempre sob suas vistas.
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A
água na Palestina
Quanto
ao regime das chuvas, está longe de ser plenamente satisfatório. Sem ser,
entretanto, mau, os números mostram-no melhor que o de muitas outras regiões
mediterrâneas: 420 milímetros de chuva por ano e mais de 600 nas alturas da
Galiléia. Mas esta chuva cai em poucos dias, quase toda em outubro e março, sob
a forma de aguaceiros brutais de que fala o Evangelho, que fazem transbordar as
ribeiras em poucos minutos, podem levar casas se os seus alicerces são pouco
sólidos e, afinal de contas, não causam o bem esperado. Se, entretanto, faltam,
sobretudo as mais tardias, as da Primavera, eis a ruína. Por isso os Judeus do
tempo de Jesus, no derradeiro dia da festa dos Tabernáculos, subiam às colinas
e terraços para verem em que direção iam os fumos do Templo, porque se julgava
infalivelmente que isso indicaria se o ano era chuvoso ou não. No Ghor, onde
nunca chegavam os ventos do oeste, as chuvas são quase nulas e as únicas águas
utilizáveis são as do Jordão ou as dos nascentes. Na depressão do mar Morto,
não só não chove, mas a evaporação rouba, cada ano, 15 metros de espessura de
água, a mesma que o Jordão conduz - o que explica o alto teor salino do
estranho líquido.
O
problema da água, neste país de solo seco e fendido, de clima pouco úmido,
põe-se, portanto, seriamente. Punha-se bem mais há dois mil anos que hoje, em
que grandes trabalhos foram realizados por Israel para os resolver. Não é, pois
por acaso que a poesia da água tinha um lugar considerável na Bíblia: “Fonte do
jardim, poço de água viva, regato que corre do Líbano”, diz do seu amado a
noiva do “Cântico dos Cânticos”, e um muito velho hino, recolhido pelo livro
dos Números, cantava “o poço que os próprios reis cavaram com ceptro”. Não era
ainda por acaso que o profeta Ezequiel, para evidenciar o esplendor dos tempos
messiânicos, havia predito que um rio puro saltaria do coração do Templo, para
correr para ao mar Morto que por ele seria saneado, nem que Jesus, quando
anunciara à Samaritana que Ele mesmo era o Messias esperado, compara à “água
viva” a sua mensagem de salvação. Para assegurar o precioso líquido aos homens,
aos animais e aos campos, tinha sido necessário cavar numerosos poços, levar
com cuidado às aldeias a água das fontes e dos regatos. No tempo de Jesus
Cristo, havia muito tempo – desde os Reis – que existia, e os Judeus sentiam-se
orgulhosos por não serem obrigados, como os Egípcios, a regar com o pé, segundo
a palavra do Deuteronômio. Mas tinha sido preciso estabelecer estritos
regulamentos para que a água fosse utilizada com medida. Em cada aldeia era
designado um “inspetor de águas”. Na hora estabelecida, abria as comportas. E
imediatamente, de bilha na cabeça, as mulheres se precipitavam.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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A
palavra hebreu
A
palavra Hebreu era, na Bíblia, posta em relação com um personagem chamado
Heber, que teria sido o último neto de Sem. Liga-se à raiz ibiri, que significa
“passar”, que se encontra na Mesopotânia sob a forma “habirou” e no Egito no
termo que designava os ladrões vindos da estepe, os “Apirou”. O Hebreu é, pois,
exatamente “o que passa”, o homem das grandes viagens: a palavra relembra as
mudanças prodigiosas de Ur a Canaã, nos tempos de Abraão, do país do Nilo ao do
Jordão, com Moisés durante os quais, o povo eleito tomara consciência de si
mesmo e do seu destino. As almas verdadeiramente fiéis guardavam a nostalgia
desta época; o deserto era o lugar bendito onde, “caminheiro sobre a terra”,
como dirá Jesus, longe das impuras facilidades das cidades, cada um podia
aproximar-se de Deus. A tenda nômade permanecia, para os crentes, um belo
símbolo de espiritualidade que se reconstituía na festa do Tabernáculo. Era
tudo o que queria dizer um contemporâneo de S. Paulo proclamando-se Hebreu.
Dizendo-se
Israelita, significava mais ainda. Sabemos que o nome de Israel foi dado pelo
“Anjo do Senhor” – o que quer dizer, sem dúvida, pelo poder divino – a Jacob,
no fim da noite dramática em que, perto do vale de Jacob, travou o mais
singular dos combates. Contundido, o quadril luxado, mas orgulhosamente por ter
lutado sem sucumbir, até à aurora, o Patriarca recebeu esse sobrenome como uma
recompensa e como um penhor. O combate espiritual “tão brutal como a batalha
dos homens”, diz o poeta, esse corpo a corpo como as potências do destino que
cada homem deve travar na carne e na alma, “Israel” trava-a por se e pela sua
descendência. Ser israelita era ser membro do povo que enfrentava Deus.
Quanto
ao termo Judeu que só se encontra no Novo Testamento, e no segundo livro do
Macabeus, que a administração romana adotara e generalizara, que nos nossos
dias é o mais espalhado – com uma acentuação que a literatura antissemítica
tornou injusta e desagradável – tinha, também, um significado histórico e
espiritual admirável. Datava da época da volta do Exílio. A principal tribo
cujos membros haviam sido deportados por Nabucodonosor para Babilônia era (como
a de Benjamim) a de Judá. Eram, pois eles, os “filhos de Judá” que tinham
conservado intacto o tesouro da fé e das tradições ancestrais, quando na
Palestina os restos das outras dez cediam mais ou menos às tentações do
paganismo. Voltando ao país, tinham-se instalado na Judéia, que tinha o seu
nome, á volta da cidade santa de Jerusalém e ai haviam restabelecido a religião
sobre as bases mais seguras. Como o havia profetizado Jacob morrendo na terra
do Egito, “o ceptro não sairá de Judá” e uma benção especial descera sobre ele,
de século a século. A etimologia tinha valor de sinal: os homens de Judá, da
Judéia, os Judeus, eram os homens da fidelidade.
Fonte:
A vida cotidiana na Palestina no tempo de Jesus - Daniel Rops
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