Até hoje são escassos
os dados biográficos daquele que mais conhecido se tornou sob o pseudônimo de
Allan Kardec. Afirma-se que em linha
paterna descende de tradicional família de juristas e, em linha materna, de
teólogos ilustres, matemáticos e escritores, alguns dos quais teriam pertencido
à Academia de Ciências e à Academia Francesa, pontos culminantes para homens de
ciência e para homens de letras.
A 3 de outubro de 1804,
às 19 horas, a casa do magistrado Jean-Baptiste-Antoine Rivail, na cidade de
Lyon, rue Sala, 76, ouvia os primeiros vagidos de uma criança destinada a
influir poderosamente nos destinos da humanidade. O registro civil, feito no
dia seguinte, indicava o nascimento supra de Denizar-Hippolyte-Léon Rivail,
sendo seus pais o magistrado acima mencionado e sua esposa Jeanne Duhamel;
assinaram como testemunhas, a pedido do médico Pierre Radamel, os senhores
Syriaque-Frédéric Dittmar e Jean-François Targe. Remata o documento o sr. Mathiou,
presidente do Tribunal.
Há entre os espíritas
uma certa confusão quanto ao nome do Codificador, por falta de acomodação entre
o sistema francês e o nosso de citar o nome das pessoas. Para uns o menino em
questão era Léon, para outros Denizard e, ainda para um terceiro grupo,
Hippolyte. Comumente se escreve Hippolyte-LéonDenizard Rivail, enquanto que nos
documentos oficiais escrever-se-ia Rivail Hippolyte Léon-Denizard.
Educado na Escola de
Pestalozzi, em Yverdun (Suíça), tornou-se um dos mais eminentes discípulos
desse célebre professor e um dos zelosos propagandistas do seu sistema de
educação, que tão grande influência exerceu sobre a reforma do ensino na França
e na Alemanha. Foi nessa escola que lhe desabrocharam as ideias que mais tarde
o colocariam na classe dos homens progressistas e dos livres-pensadores. Concluídos
seus estudos, voltou para a França. Conhecendo a fundo a língua alemã, traduzia
para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral e, o que é muito
característico, as obras de Fénelon, que o tinham encantado de modo particular.
Nascido sob a religião
católica, mas educado num país protestante, os atos de intolerância que por
isso teve de suportar, no tocante a essa circunstância, cedo o levaram a
conceber a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio
durante longos anos com o intuito de alcançar a unificação das crenças.
Faltava-lhe, porém, o elemento indispensável à solução desse grande problema. O
Espiritismo veio, a seu tempo, imprimir-lhe especial direção aos trabalhos.
Era membro de várias
sociedades sábias, entre outras, da Academia Real de Arras, que, em o concurso
de 1831, lhe premiou uma notável memória sobre a seguinte questão: Qual o
sistema de estudos mais de harmonia com as necessidades da época?
De 1835 a 1840, fundou,
em sua casa, à Rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química, Física, Anatomia
comparada, Astronomia, etc., empresa digna de encômios em todos os tempos, mas,
sobretudo, numa época em que só um número muito reduzido de inteligências
ousava enveredar por esse caminho.
Entre as suas numerosas
obras de educação, podem ser citadas: Plano proposto para melhoramento da
Instrução pública (1828); Curso prático e teórico de Aritmética, segundo o
método Pestalozzi, para uso dos professores e das mães de família (1824);
Gramática francesa clássica (1831); Manual dos exames para os títulos de
capacidade; Soluções racionais das questões e problemas de Aritmética e de
Geometria (1846); Catecismo gramatical da língua francesa (1848); Programa dos
cursos usuais de Química, Física, Astronomia, Fisiologia, que ele professava no
Liceu Polimático; Ditados normais dos exames da Municipalidade e da Sorbona,
seguidos de Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas (1849), obra
muito apreciada na época do seu aparecimento e da qual ainda recentemente eram
tiradas novas edições.
Antes que o Espiritismo
lhe popularizasse o pseudônimo de Allan Kardec, já ele se ilustrara, como se
vê, por meio de trabalhos de natureza muito diferente, porém tendo todos, como
objetivo, esclarecer as massas e prendê-las melhor às respectivas famílias e
países.
Pelo ano de 1855, posta
em foco a questão das manifestações dos Espíritos, Allan Kardec se entregou a
observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando principalmente de lhe
deduzir as consequências filosóficas. Entreviu, desde logo, o princípio de
novas leis naturais: as que regem as relações entre o mundo visível e o mundo
invisível. Reconheceu, na ação deste último, uma das forças da Natureza, cujo
conhecimento haveria de lançar luz sobre uma imensidade de problemas tidos por
insolúveis, e lhe compreendeu o alcance, do ponto de vista religioso. Suas
obras principais sobre esta matéria são: O Livro dos Espíritos, referente à
parte filosófica, e cuja primeira edição apareceu a 18 de abril de 1857; O
Livro dos Médiuns, relativo à parte experimental e científica (janeiro de
1861); O Evangelho segundo o Espiritismo, concernente à parte moral (abril de
1864); O Céu e o Inferno, ou A justiça de Deus segundo o Espiritismo (agosto de
1865); A Gênese, os Milagres e as Predições (janeiro de 1868); A Revista
Espírita, jornal de estudos psicológicos, periódico mensal começado a 1º de
janeiro de 1858.
Fundou em Paris, a 1º
de abril de 1858, a primeira Sociedade espírita regularmente constituída, sob a
denominação de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo
era o estudo de quanto possa contribuir para o progresso da nova ciência. Allan
Kardec se defendeu, com inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito
debaixo da influência de ideias preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter
frio e calmo, observou os fatos e de suas observações deduziu as leis que os
regem. Foi o primeiro a apresentar a teoria relativa a tais fatos e a formar
com eles um corpo de doutrina, metódico e regular. Demonstrando que os fatos
erroneamente qualificados de sobrenaturais se acham submetidos a leis, ele os
incluiu na ordem dos fenômenos da Natureza, destruindo assim o último refúgio
do maravilhoso e um dos elementos da superstição.
Durante os primeiros
anos em que se tratou de fenômenos espíritas, estes constituíram antes objeto
de curiosidade, do que de meditações sérias. O Livro dos Espíritos fez que o
assunto fosse considerado sob aspecto muito diverso. Abandonaram-se as mesas
girantes, que tinham sido apenas um prelúdio, e começou-se a atentar na
doutrina, que abrange todas as questões de interesse para a Humanidade. Data do
aparecimento de O Livro dos Espíritos a fundação de Espiritismo que, até então,
só contara com elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance nem toda
gente pudera apreender. A partir daquele momento, a doutrina prendeu a atenção
de homens sérios e tomou rápido desenvolvimento. Em poucos anos, aquelas ideias
conquistaram numerosos aderentes em todas as camadas sociais e em todos os
países. Esse êxito sem precedentes decorreu sem dúvida da simpatia que tais ideias
despertaram, mas também é devido, em grande parte, à clareza com que foram
expostas e que é um dos característicos dos escritos de Allan Kardec.
Evitando as fórmulas
abstratas da Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem fadiga, condição
essencial à vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos controversos, sua
argumentação, de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à refutação e
predispõe à convicção. As provas materiais que o Espiritismo apresenta da
existência da alma e da vida futura tendem a destruir as ideias materialistas e
panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa doutrina e que deriva do
precedente é o da pluralidade das existências, já entrevisto por uma multidão
de filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por João Reynaud,
Carlos Fourier, Eugênio Sue e outros. Conservara-se, todavia, em estado de
hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstrara a realidade e
prova que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da Humanidade. Dele
promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida humana, de todas
as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao homem saber
donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que aí sofre.
As ideias inatas se
explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a marcha dos
povos e da Humanidade, pela ação dos homens dos tempos idos e que revivem,
depois de terem progredido; as simpatias e antipatias, pela natureza das
relações anteriores. Essas relações, que religam a grande família humana de
todas as épocas, dão por base, aos grandes princípios de fraternidade, de
igualdade, de liberdade e de solidariedade universal, as próprias leis da
Natureza e não mais uma simples teoria. Em vez da fé cega, que anula a liberdade
de pensar, ele diz: Não há fé inabalável, senão a que pode encarar face a face
a razão, em todas as épocas da Humanidade. A fé, uma base se faz necessária e
essa base é a inteligência perfeita daquilo em que se tem de crer. Para crer,
não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é para este
século. É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser hoje tão grande o
número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige a abolição de uma das
mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio.
Trabalhador infatigável, sempre o primeiro a tomar da obra e o último a
deixá-la, Allan Kardec sucumbiu, a 31 de março de 1869, quando se preparava
para uma mudança de local, imposta pela extensão considerável de suas múltiplas
ocupações. Diversas obras que ele estava quase a terminar, ou que aguardavam
oportunidade para vir a lume, demonstrarão um dia, ainda mais, a extensão e o
poder das suas concepções. Já não existe o homem. Entretanto, Allan Kardec é
imortal e a sua memória, seus trabalhos, seu Espírito estarão sempre com os que
empunharem forte e vigorosamente o estandarte que ele soube sempre fazer
respeitado. Uma individualidade pujante constituiu a obra. Era o guia e o fanal
(Farol) de todos. Na Terra, a obra subsistirá o obreiro. Os crentes não se
congregarão em torno de Allan Kardec; congregar-se-ão em torno do Espiritismo,
tal como ele o estruturou e, com os seus conselhos, sua influência,
avançaremos, a passos firmes, para as fases ditosas prometidas à Humanidade regenerada.
(Fonte: Livro Obras
Póstumas).
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