AUTO DE FÉ DE BARCELONA
Há 160 anos a Inquisição tentou conter a marcha do
Espiritismo
Auto de Fé foi o nome dado às cerimônias em que eram
proclamadas e executadas as sentenças do Tribunal de Inquisição da Igreja
Católica, também conhecido como Tribunal do Santo Ofício. Ele foi instituído no
começo do século XIII, pelo Papa Gregório IX, a pretexto de caçar e julgar os
réus acusados de heresia (crime contra a fé cristã). Nas nações que proclamavam o catolicismo como
a religião oficial do Estado, autoridades eclesiásticas detinham o poder de
abrir processos, julgar (muitas vezes sumariamente, sem defesa nem apelação) e
expedir sentenças, a serem executadas pelo Estado, contra os condenados. Mas, o
que foi o Auto de Fé de Barcelona? O Auto de fé de Barcelona foi uma expressão
notabilizada por Allan Kardec para se referir à queima, em praça pública, de
trezentos livros espíritas, realizada no dia 9 de outubro de 1861, em
Barcelona, Espanha. Ela foi utilizada pela primeira vez no subtítulo do artigo
“O resto da Idade Média”, publicado em novembro daquele ano na “Revue Spirite”.
A Espanha viu apagarem-se as últimas fogueiras da
Inquisição, ou seja, do antigo tribunal eclesiástico instituído pela Igreja
Católica. Porém, os últimos baluartes da Inquisição permaneceram nesse país. Os
espanhóis tiveram alguma dificuldade para travar contato com o Espiritismo.
A história do Auto de fé de Barcelona
No início de 1861, Allan Kardec lançava O Livro dos
Médiuns – guia dos médiuns e dos evocadores. Maurice Lachâtre, Intelectual e
editor francês, achava-se estabelecido em Barcelona com uma livraria, quando
solicitou a Kardec, seu compatriota, em Paris, uma partida de livros espíritas,
para vendê-los na Espanha. Encomendou uma quantidade de O Livro dos Espíritos,
O livro dos Médiuns, as Coleções da Revista Espírita, e exemplares de diversas
obras doutrinárias e afins; livros, folhetos e diversas obras e brochuras espíritas,
formando um total em torno de trezentos volumes. Lachâtre só não contava com a
intolerância do bispo da cidade. O material chegou à Espanha através de
tramitação legal, com impostos e taxas devidamente pagos e com a documentação
correta. O destinatário pagou direitos de entrada dos volumes. Quando os livros chegaram ao país, e passavam
pela alfândega espanhola, a remessa foi confiscada pela Igreja local, por ordem
do Bispo de Barcelona, pois, a liberação de livros e ou sua censura, competia à
autoridade eclesiástica. Se as referidas obras tivessem sido introduzidas
clandestinamente ou em fraude, nada poderia ser feito, mas foram expedidas e
apresentadas na alfândega de modo correto. Argumentando que aquelas obras eram
contrárias à fé católica, o bispo de Barcelona então sentenciou que fossem queimados,
sem qualquer tipo de indenização aos seus proprietários. Ficou sem resposta a
inquirição do cônsul francês em Barcelona, onde afirmava que, se as obras não
fossem convenientes aos espanhóis, que se dignasse ao menos a devolvê-las. O
mesmo eclesiástico recusou-se a reexportar as obras apreendidas, condenando-as
à destruição pelo fogo em praça pública pela mão do carrasco. E o espetáculo,
só assim pode-se classificar tal ato de intolerância e intransigência, foi
marcado para o dia 09 de outubro de 1861 às 10h30min, sob alegação de que a
Igreja Católica sendo universal, e os livros, em contradição à fé católica, o
governo não podia consentir que eles pervertessem a moral e a religião de
outros países. Faz então entrar em cena um sacerdote encapuçado, com roupas
sacerdotais, levando em uma das mãos a cruz e, na outra, uma tocha acesa.
Seguem-no um escriba encarregado de lavrar a ata do Auto de fé; o escrevente do
notário; um funcionário superior da administração; três serventes da alfândega,
encarregados de manter o fogo; um agente da alfândega representando o
proprietário das obras condenadas pelo bispo, e uma e uma multidão inumerável
encobria os passeios e cobria a imensa esplanada onde se elevava a fogueira. E
os volumes foram queimados como se fossem réus da Inquisição. Quando o fogo
consumiu os volumes, o padre e seus ajudantes se retiraram, cobertos pelas
vaias e as maldições dos numerosos assistentes que gritavam: “Abaixo a
inquisição”. Quando as cinzas dessa fogueira foram resfriadas, notou-se que um
grande número de pessoas que estavam presentes, ou que passavam por perto,
sabedoras do fato, se dirigiam para o lugar do auto de fé, e recolhiam uma
parte das cinzas para conservá-las. O ato causou grande polêmica, com
manifestações favoráveis e desfavoráveis através de jornais, inclusive de
outros países, ensejando, a contragosto dos protagonistas da Inquisição, larga
propaganda para a Doutrina nascente e já perseguida, desconhecida da grande
maioria das pessoas. O efeito que produziu sobre os assistentes foi a
estupefação em uns, o riso em outros, e a indignação entre a maioria, à medida
que se dava conta do que se passava. Os principais jornais da Espanha
noticiaram o fato, digno da “Idade das Trevas”, e a procura pelas obras
espíritas, como previu o mentor espiritual, se tornou intensa.
Tão logo soube da apreensão dos livros, mas antes da
execução da sentença, Kardec consulta seu guia espiritual — Espírito Verdade —
se seria favorável reclamar a restituição das obras e se deveria publicar os
fatos relacionados na Revista Espírita. Eis a resposta: "Por direito, pode
reclamá-las e conseguiria que te fossem restituídas, se te dirigisse ao
Ministro de Estrangeiros da França. Mas, ao meu parecer, resultará desse
auto-de-fé maior bem do que o que viria da leitura de alguns volumes. A perda
material não é nada em comparação da repercussão que semelhante fato produzirá
em favor da Doutrina. Deve compreender quanto uma perseguição tão ridícula e
atrasada poderá fazer a bem do progresso do Espiritismo na Espanha. A queima
dos livros determinará uma grande expansão das ideias espíritas e uma procura
febricitante das obras dessa doutrina. As ideias se disseminarão lá com maior
rapidez e as obras serão procuradas com maior avidez, desde que as tenham
queimado. Tudo vai bem”. O Auto de Fé de Barcelona foi um importante episódio
para a História do Espiritismo, apesar de se tratar de uma ofensiva da
Inquisição Católica contra a Doutrina Espírita.
Kardec, em decorrência deste episódio, comentou: “Graças
a esse zelo imprudente, todo o mundo, na Espanha, vai ouvir falar do
Espiritismo e quererá saber o que é; é tudo o que desejamos. Podem-se queimar
as ideias; as chamas das fogueiras as superexcitam em lugar de abafá-las. As
ideias, aliás, estão no ar, e não há Pirineus bastante para detê-las; e quando
uma ideia é grande e generosa, ela encontra milhares de peitos prontos para
aspirá-las”.
Diante desse fato, Kardec, pela Revista Espírita, que já
tinha assinantes em quase todo o mundo, proclamou: “Espíritas de todos os
países! Não esqueçais a data de 09 de outubro de 1861. Será marcada nos anais
do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa e não de luta, porque é o
penhor de vosso próximo triunfo”. Um dos últimos Autos de Fé de nossa história,
ao queimar os livros espíritas, não conseguiu destruir as ideias e o ideal. Ao
contrário, o fogo resultou a fumaça que subiu alto e se esparziu… As ideias, o
ideal e a difusão se fortificaram com o ato inquisitorial.
Podem-se queimar os livros, mas não se queimam as ideias;
as chamas das fogueiras as superexcitam em lugar de abafá-las. As ideias,
aliás, estão no ar, e não há Pirenéus bastante altos para detê-las; e quando
uma ideia é grande e generosa, ela encontra milhares de peitos prontos para
aspirá-la.“
Allan Kardec
De Barcelona enviaram a Kardec uma aquarela feita in loco
por um artista distinto, representando a cena do auto de fé. Kardec mandou
fazer do quadro uma redução fotográfica. Um exemplar de O Livro dos Espíritos,
carbonizado pela metade. Um punhado de cinzas apanhado na fogueira, alguns
fragmentos legíveis de folhas queimadas foram colocados em uma urna de cristal.
Lamentavelmente, a intransigência que ainda perdurou na primeira metade do
século XX, fez com os nazistas durante a 2a. Grande Guerra destruíssem a urna. Estamos
no século XXI e ainda constatamos discriminações, preconceitos, perseguições a
pessoas, a religiões, a minorias, às mulheres, a nacionalidades, a etnias,
inclusive com destruição de templos, agressões e até morte de religiosos, em
decorrência da intolerância ideológica, do fanatismo.
Muita Paz!
Nenhum comentário:
Postar um comentário